A internet está cheia de histórias sobre nômades digitais, mas e quem só se encaixa pela metade nessa classificação?
O tema do filme Nomadland, que acaba de ganhar 3 prêmios no Oscar, me inspirou a escrever sobre algumas pessoas que conheci quando trabalhava como gerente de hostels — experimentando o estilo de vida dos nômades modernos.
Já fiz muitos posts sobre o nomadismo digital, mas quem retrato aqui nunca teve a pretensão de entrar nessa onda.
Aliás, esse retrato é feito de pequenas cenas e impressões sobre pessoas de quem sei muito pouco. Até porque as menores bagagens podem carregar grandes mistérios…

Elizabeth e a teoria dos astros transexuais
Na faixa dos 60 anos, e até fisicamente parecida com a atriz de Nomadland, a americana Elizabeth ocupou por quase 6 meses uma cama de beliche em um grande quarto compartilhado.
Ela quase não ia à praia ou fazia passeios pela cidade e arredores, como os outros hóspedes do hostel. Mas fazia questão de comprar ração para uma gatinha de rua que “adotou” e apelidou de Mace (gato, em albanês) e uma boa ração de cigarros e bebidas para si própria.
Passava boa parte do tempo assistindo séries em seu laptop, fumando e bebendo cada vez mais à medida que o dia ia passando. Às vezes, passava do ponto.
Ficava ranzinza e procurava maneiras de polemizar com qualquer pessoa, se intrometendo em qualquer tipo de conversa. Só que ela ainda parecia estar lúcida quando tivemos o papo mais bizarro de nossa convivência.
Numa bela tarde, na varanda, Liz afirmou saber qual o grande segredo das estrelas do cinema e da música. Segundo ela, esses artistas alteram profundamente os seus corpos para chegarem ao ápice da beleza, chegando a mudar de sexo para isso.
Para comprovar sua teoria, mostrou traços masculinos em atrizes e cantoras, além do respectivo vice-versa.
Fiquei sem reação. E ela ficou satisfeita.
Depois disso, sempre me chamava para mostrar algum clipe ou cena de filme para reforçar sua teoria e, quando partiu, me deixou responsável por alimentar a Mace.
Sir David, o lorde e o vagabundo
Dá para manter a elegância no nomadismo? Talvez. Mas, antes de entrar nessa história, preciso contar um pouco sobre o cenário onde ela se passa: um hostel em Saranda, na Riviera Albanesa.

Abrigado em um prédio de 4 andares no alto de uma colina, com uma vista estonteante para compensar a falta de elevadores, o conceito do lugar seguia a linha do “menos é mais”.
Só que de um jeito bem peculiar.
O lema do dono era “cobrar pouco para ganhar muito” e ele oferecia bons descontos para estadias prolongadas.
Acomodava os hóspedes até em barracas no jardim (para atender à alta demanda no verão) e subia as tarifas à medida que aumentava o nível do conforto, caso dos quartos com suíte e miniapartamentos com minicozinha nos pisos superiores.
Em resumo, pagava menos quem acampava ou ocupava uma cama de beliche no térreo, compartilhando a cozinha e os banheiros com mais gente no auge da temporada.
Com pé direito alto, ambientes amplos, muita luminosidade entrando pelos janelões e um figuraça como dono, a atmosfera era um dos melhores selling points para essa acomodação de baixo orçamento.
Vencida a subidona de 600m para ir da praia até lá, ficava difícil desistir da reserva. Pela vista, pelo bolso e pela vibe.
Foi o que aconteceu com o personagem que entra em cena agora.
Com 73 anos e trejeitos de lorde inglês que fazem lembrar seu conterrâneo e xará, o ator David Niven, logo ganhou tratamento de Sir.
Escolheu um beliche em um canto um pouco mais reservado no dormitório com suíte do primeiro andar. Montou uma espécie de cortina com um lençol de estampa exótica e sempre usava sua lábia para receber alguma regalia por conta da casa.
A equipe até evitava reservar a cama acima da dele, mas isso porque sua fineza podia se tornar bastante ácida de vez em quando.
Pela maneira afetada como falava (e os livros que lia), muitos achavam que ele era ou teria sido um professor ou acadêmico. Sir David preferia manter o mistério e odiava qualquer insinuação de que já tivesse vivido uma vida banal.
Certo dia, uma hóspede chinesa foi puxar conversa com o manjado “o que você faz” e ele respondeu de forma floreada que estava tomando sol. Ela insistiu, usando outros termos por imaginar que não se expressara bem. Queria saber qual a profissão do nosso nobre hóspede.
Sir David respirou fundo e disse, em seu melhor sotaque britânico: “Eu aboli de meu vocabulário essa palavra de quatro letras” — expressão que, em inglês, significa palavrão — “portanto, minha senhora, nem ouse dizer W-O-R-K novamente para mim”.
Outros nômades modernos e a inspiradora Nicky
Morar em um hostel não é bem um sonho para maioria dos nômades, digitais ou não. Mas a combinação de baixas tarifas de hospedagem com o menor custo de vida em alguns países — sendo que a localização da Albânia ainda favorece quem precisa passar um tempo fora do Espaço Schengen— são fatores que facilitam muito a jornada.
Por conta disso, os hostels onde trabalhei serviram como cenário de muitas histórias de nômades modernos.

De jovens que viajam de bicicleta a pessoas aguardando a liberação de vistos, como no caso de uma bela filipina à espera de realizar o sonho de morar em Dubai e de um casal bem novinho, formado por uma eslovaca que sabia falar português e seu namorado chileno.
Também há quem fuja de algo, como o professor turco que sofria perseguição política (e de gênero) em seu país e o alemão que passava os dias jogando em seu laptop. Aliás, ele até preferia que os funcionários o chamassem de “German” em vez de falarem alto o seu nome.
Já a Nicky descobriu nesse estilo de vida um sonho que jamais poderia ter passado por sua cabeça.
Criada em uma sociedade cheia de limitações às mulheres, no Sri Lanka, ela foi parar no hostel que eu gerenciava em Colombo por motivos de “o que fazer com essa menina?”.
Parente meio distante de um dos sócios daquela rede de hostels, pretendia estudar hotelaria e trabalhar de salto alto, bem-vestida e maquiada.
Em pouco tempo, minha nova estagiária começou a fazer de tudo para pegar os plantões noturnos e tentar convencer nosso chefe de que ela também deveria morar no hostel — usando roupas leves e chinelos, trocando o carão por um sorriso imenso no rosto.
Logo adotou um apelido em inglês, já que seu lindo nome local tem pronúncia desafiadora para estrangeiros.
Em uma madrugada, durante nosso plantão, ela me contou sua história.
Foi obrigada a casar muito cedo, ao ser pega namorando. Teve que ir viver com a família do rapaz, mais abastada, que a tratava como indigna.
Sofreu maus tratos de todos na casa até conseguir o divórcio — não sem antes passar por uma série de humilhações e perseguições nos empregos que conseguia para se sustentar, morando com uma tia.
Chegou a ser arrastada pelos cabelos enquanto andava na calçada… com o puxão vindo de dentro de um tuktuk!
Só no hostel, cercada por nômades modernos e viajantes descolados, ela podia viver como a incrível garota de vinte e poucos anos que habitava dentro dela.
Passados alguns meses, fui contratada por um hotel-boutique em outra cidade e ela também conseguiu emprego com estadia em um resort bem longe da família.
Antes que eu fosse embora do Sri Lanka, pudemos aproveitar uma folga juntas na praia. Entre mergulhos para escapar das ondas, ela me disse algo que define sua relação com o nomadismo — e também tem muito a ver com a minha:
“Ninguém nunca mandou em mim, nem vai mandar”.
The end (até o próximo post).
Beijos, Prats
Texto perfeito e inteligente. Parabéns! Muito bom!
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